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Como a Educação pode influenciar o mundo hoje?

Atualizado: 6 de nov. de 2019

Discurso pronunciado por Maria Montessori no Sexto Congresso Internacional Montessori realizado em 1937 em Copenhague, Dinamarca, e publicado no  livro Educação e Paz.


Gostaria de propor uma ideia de importância fundamental: o tipo de educação que se necessita para promover a causa da paz, e que deve ser necessariamente complexa e totalmente distinta do que em geral se quer dizer com a palavra educação.


A educação, segundo se analisa comumente, não intervém na solução de questões sociais importantes e se crê que não tenha efeito em situações que concernem à humanidade como um todo. Em síntese, considera-se que sua importância seja muito limitada; porém se vamos  ter uma verdadeira educação para a paz, ela deve ser considerada “universalmente” um fator fundamental e indispensável, um tema de interesse decisivo para toda a humanidade.


Quando analisamos questões sociais, ignoramos a criança por completo, como se nem sequer fizesse parte da sociedade. Entretanto, se refletimos sobre a influência que pode ter a educação para atingir o objetivo de alcançar a paz mundial, podemos ver com clareza que antes de tudo devemos nos ocupar da  criança e sua educação. Temos advertido que a educação pode ter uma enorme influência na humanidade, por isso reforçamos que a educação é importante.


Já não se deve pensar na educação como se tratasse somente da aquisição de conhecimento pela crianças, e sim como uma das questões sociais de maior relevância, já que é o único tema que  concerne a toda a humanidade. As outras numerosas questões sociais têm a ver com um grupo ou outro de adultos e envolvem um número relativamente pequeno de seres humanos. A questão social da criança, sem dúvidas, tem a ver com todos os homens em todas as partes.


Em muitas oportunidades nos encontramos diante  de questões sociais que supõem problemas aparentemente insolúveis. Estou convencida de que nossa incapacidade para resolvê-los surge do fato de que não levamos em conta um fator crucial: o ser humano durante a infância. Discutimos muitos temas sociais importantes, porém todos eles estão relacionados com o adulto; e esse adulto, que tem pensado tanto em si mesmo, que tem tentado melhorar sua própria vida, esqueceu-se de uma grande parte de si mesmo, já que nenhum ser humano nasce adulto. Entretanto, em que idade  o homem se converte em homem, isto é, em ser humano, em um ser social que reclama ter certos direitos humanos? “O homem é um ser humano desde o dia de seu nascimento, incluso desde sua concepção.”


Não faz muito tempo, a sociedade se preocupava com as crianças somente em relação à necessidade de oferecer-lhes alguma instrução escolar. Hoje também se preocupa com sua saúde física, porém isso é higiene, não educação. Poderíamos acrescentar que o homem, nos primeiros anos de  vida, é considerado, do ponto de vista físico, somente um corpo. A que idade se começa a considerá-lo humano?


É óbvio que demostramos uma lamentável falta de consciência quando não reconhecemos que a criança é uma personalidade com grande valor humano e direitos sociais sagrados. Muitos ficarão atônitos diante desta afirmação e lhes parecerá demasiado exagerada, absurda. De imediato reagiriam: “Como nos podem acusar pela falta de preocupação pela criança se ela é a luz de nossos olhos, nossa esperança? Como  nos podem acusar pela falta de preocupação se somos pais dedicados, com profunda consciência de nossas responsabilidades?”  Se na verdade amamos as crianças, se as queremos muitíssimo, por que não as apreciamos pelo que são na realidade? Amamos as nossas crianças, ou pensamos que as amamos, porém não as entendemos. Não fazemos o que deveríamos fazer por elas porque não temos ideia do que deveríamos fazer. Que lugar elas deveriam ocupar na sociedade?


Há algum tempo surgiu um tema muito importante: o lugar da mulher na sociedade. Naquela época também parecia absurdo falar das mulheres esquecidas como seres humanos. Como descuidamos das mulheres se fazemos todo o possível por elas, se as amamos tanto, se as protegemos e estamos dispostos a morrer por elas, se passamos a vida trabalhando para elas? Não obstante, existia a questão do lugar da mulher na sociedade. Hoje, existe a questão do lugar da criança na sociedade.


Temos apregoado durante anos que a ideia que o adulto tem da criança é errônea. O adulto comete um grave equívoco quando pensa que é o criador da criança e crê que deve agir pelo pequeno. O adulto vê a criança quase como um recipiente vazio que deve ser preenchido. O adulto crê que é o criador da criança, quando na realidade deveria se colocar como um “servidor da  criação”; mas o máximo que consegue é ser um ditador ao qual a criança deve obedecer cegamente. O adulto  incluiu essa classe de ditadura entre seus problemas sociais, porém nunca considerou como sendo um problema social para a criança.

O problema não se resolve com tanta facilidade como creem alguns pedagogos modernos, que dizem: “Deixemos que as crianças  façam o que querem. Demos-lhes absoluta liberdade e curvamo-nos diante desta porção da humanidade”. Mas se fizéssemos isso, o mundo ficaria de cabeça para baixo produzindo uma revolução das crianças. Na realidade, o que se necessita é dar-se conta de que há um verdadeiro problema a resolver, um problema de educação.


É muito interessante observar que a criança está nos ajudando a resolver esse problema. A criança obviamente não pode solucioná-lo de forma direta, mas ao nos revelar a sua verdadeira natureza, ela nos ajuda a mudar por completo nossas noções do que seja educação, e faz com que nosso foco básico sobre o tema seja prático, experimental e científico.


Como quase todo mundo sabe, os primeiros anos de vida da criança são os mais importantes do ponto de vista do desenvolvimento físico. Aprendemos que ele também se aplica ao desenvolvimento psíquico. Por conseguinte, se queremos conquistar  que a educação seja uma preparação para a vida e um meio de reforçar o valor da vida, devemos iniciar a educação da criança desde o seu nascimento. O período mais importante da educação é o primeiro, dado que nessa etapa inicial a personalidade da criança seja ainda simples, se desenvolve gradualmente, passo a passo. Nessa etapa, as leis do crescimento psíquico humano  podem ser vistas com bastante clareza, como também  mediante o estudo da embriologia  pode-se ver o desenvolvimento de complexos organismos que já estão desenvolvidos.


Como deveria ser a educação nos primeiros anos de vida da criança? Para nós, a educação não é simplesmente ensinar no sentido habitual de transmitir um conjunto de dados à criança; para nós, a educação é uma forma de proteção, de dar ajuda para respeitar as leis da vida.


A educação deve ajudar que a psique da criança se desenvolva desde o dia em que nasce. A criança tem uma vida psíquica desde o nascimento.  Está sendo publicada uma grande quantidade de informação proveniente de investigações científicas que respaldam essa afirmação. Entre os documentos contemporâneos mais impressionantes  encontram-se estudos relacionados à consciência do recém nascido e provas  realizadas com crianças de apenas duas horas de vida. Desde o momento em que nasce, a criança representa um mistério para nós, uma criatura que poderia descrever-se como um embrião espiritual.

Em meu livro “A Criança” analisei sucintamente estes acontecimentos tão transcendentes. A criança é inteligente, vê e reconhece coisas em uma idade na qual em certa época se considerava que sua mente estava totalmente em branco.


Aos quatro meses, um bebê já observou tudo o que estava ao seu redor e reconhece inclusive a imagem de objetos. Ao completar um  ano já viu tantas coisas,  que o óbvio já não lhes interessa e busca coisas menos evidentes.


Quando entra no segundo ano já é “esnobe” e sente falta de algo mais interessante, algo invisível, que lhe desperte o interesse e atraia sua atenção; do contrário se aborrece por completo com tudo, tanto, que nos inclinamos a dizer: “Ele ainda não entende”.


Isso também se aplica quando a criança é maior, os professores sabem como é difícil entendê-la. A criança é a criatura mais aborrecida do  mundo. Fato é, que se aborrece desde os primeiros meses de vida, também é uma criatura descontente e chora muito, com tal grau de insistência que se diz que deve chorar para que sua voz se desenvolva de forma adequada. A criança tem uma grande força, uma grande sensibilidade interna, um grande impulso para observar e estar ativa. Todos estes traços nos tem levado à conclusão de que a criança é uma criatura de paixões intensas. E tem uma grande paixão por aprender. Se não fosse assim, como poderia orientar-se no mundo? A criança tem  inclinações naturais – que poderíamos chamar de instintos, impulsos vitais ou energias internas que lhe proporcionam um poder de observação, uma paixão por certas coisas e não por outras. Tem tanta força no que diz respeito a essas coisas, que a única explicação possível é que se trata de uma espécie de instinto.


Darei um exemplo: sua sensibilidade à ordem. Os objetos que sempre estão no mesmo lugar lhe servem como pontos de referência e  lhe permite orientar-se quando observa seu entorno. Encontrar um objeto em um lugar que não é o habitual  pode alterá-la e produzir-lhe uma crise de choro, comumente conhecida como birra, irritação. Esse tipo de sensibilidade, que a princípio ignorávamos que tivesse, e que é bastante intensa,  ajuda a criança a adquirir alguns traços definitivos de sua personalidade.


Chamamos esses acessos de sensibilidades de “períodos sensíveis”. Estes períodos chegam ao seu fim, se em seu período ativo a criança adquire algum traço de caráter de maneira imperfeita, não poderá melhorá-la. Ao serem estudados os padrões de desenvolvimento não só da criança, como também dos animais, aparentemente, percebe-se que todas as criaturas vivas têm períodos de sensibilidade especial à medida que se desenvolvem. Essas sensibilidades depois desaparecem dando lugar a traços definitivos, que chegam a ser permanentes se adquiridos nestes períodos.


Uma das coisas mais importantes que a criança conquista é o uso da linguagem. Um bebê de seis meses distingue o som da voz humana entre muitos outros ruídos que a rodeia e começa a unir esses sons. Se fosse um simples mecanismo de escutar os sons e os imitar de forma indiscriminada, o bebê que vive junto às vias de trem apitaria como uma locomotiva pelo  resto de sua vida! Sem dúvida, isso não ocorre! Ao que parece, há algo dentro da criança que lhe permite distinguir o som da voz humana dos demais sons e faz com que sinta tal fascinação pela linguagem humana que começa a falar.


É inegável que um idioma se aprende com perfeição só nos primeiros anos. De resto, se um adulto e uma criança vão viver no exterior, a criança rapidamente aprenderá a falar o idioma desse país como os nativos do lugar, enquanto o adulto sempre terá um sotaque “estrangeiro”.


A criança tem grandes poderes que os adultos já perderam, portanto, é uma criatura diferente dos adultos. Sem dúvida, nós também temos grandes poderes. Podemos raciocinar em forma lógica, por exemplo. Porém a criança tem um poder que nós adultos não temos: é o de construir o homem. O que tem que fazer o  adulto? Diante  desse embrião espiritual, deve ajudá-lo para que materialize suas conquistas.


Se a criança não pode utilizar sua inteligência, esta se atrofia. A criança necessita ter algo o que fazer, ter objetos com os quais possa atuar. Colocar estes objetos à sua disposição significa criar um entorno aonde possa atuar. Quando se deve criar esse entorno? Assim que a criança comece a movimentar-se. Os adultos tratam a criança para que permaneça inativa e pensam que ao fazer isso a estão “formando”. O adulto é um ditador.


Um ditador que quer que os demais lhe obedeçam e se nega a considerar a personalidade do outro. O problema principal, segundo a visão do adulto, é: o que fazer para que a criança obedeça? Deve tratá-la com ternura ou com severidade? O adulto não  sabe, em certos momentos é indulgente e em outros rígido; porém a criança não obedece e não corrige seus modos de proceder em nenhum dos dois casos.


Por conseguinte, o problema não está em como os adultos tratam a criança. O problema é de construção. Devemos construir para a criança um ambiente em que possa participar ativamente!


Por essa razão, digo que, se vamos  criar uma educação capaz de ajudar o desenvolvimento da humanidade, estamos diante de um enorme problema.  Deve-se construir um mundo para as crianças e os adolescentes, um mundo  que na atualidade não tem nem modelo.


A normalidade para a criança está estreitamente relacionada com a oportunidade para desenvolver as atividades características ao período correspondente. Todos os seres humanos serão anormais se não puderem desenvolver essas atividades no momento correto. Tudo isso implica em um problema social fundamental.


Esses pequenos seres humanos, que não podem falar para defender sua posição, sem dúvida nos estão dizendo: “Temos direito a um mundo para nós”. A educação deve começar no dia do nascimento, a criança deve ter a possibilidade de viver em um ambiente construído para ela, um entorno que responda às suas necessidades.


Desta forma poderia surgir uma nova ciência e, através dela,  poderia-se dar os primeiros passos para a construção de um mundo pacífico. A  harmonia entre a criança e o adulto, a criação de um lugar no mundo para os seres humanos, que neste momento não o têm, são metas que apontam para a tarefa de reconstrução que se deve empreender.


MARIA MONTESSORI


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